"(...) sobrou só esse nó no
peito, agora faço o quê?"
Caio Fernando Abreu
"Só que uma
pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz."
Guimarães Rosa em
Grande sertão: veredas
As instruções eram claras: “Para Ler ao som de Ângela Ro-Ro”. E eu
obviamente desobedeci. Não tão imediatamente, porque estava no ponto esperando
o ônibus para ir para o trabalho, e pensei seriamente que não deveria ler
aquilo ali, poderia me custar o transporte. E para variar eu já estava
atrasada. Aliás, para o trabalho e para vida. Hesitei também por respeito ao
texto, ao autor e à dor que eu sabia que viria naquelas linhas. Temor mesmo o
que senti, mas mergulhei no texto e nem reparei quando uma senhora me vendo
compenetrada na leitura, talvez por total compaixão já premeditando as feridas
certas, interrompeu-me para perguntar
- tem muito tempo que você está aqui?
Assustei com a voz, e com a pergunta que repentinamente, mesmo sendo tão
corriqueira não soube responder.
- Não sei – disse com rubor no rosto – eu realmente não faço ideia
A segunda frase saiu com um tom de pedido de desculpas, no meio de um
sorriso besta demais, que nada disfarçou. Droga de Mercúrio em câncer que
sempre me faz dizer mais do que é realmente necessário, e esse meu Marte em
câncer que me deixa com vergonha do Mercúrio, e de todo o resto do meu mapa.
Decore por favor, que tenho lua e ascendente em gêmeos, então falo demais,
demais mesmo.
Deixei de lado essa coisa toda, meti os fones no ouvido e sintonizei uma
rádio qualquer. Pronto, nave mãe pronta para entrar no universo paralelo de
músicas e leitura, num chacoalhar do ônibus. Primeiro sintoma de que eu deveria
ter parado ali mesmo de ler, me veio um cheiro que não sei se é o seu, mas que
me lembrou de você. Eu me esqueci de conferir no meu calendário se já estava
imune por tempo suficiente aos links de ativar minha memória de você. Sempre
esse ensaio, e o mais engraçado é que há algum tempo tenho sentido esse oco
mesmo que a gente sente quando sabe que está esquecendo-se de algo. Larguei
essa coisa de proteção para lá, esqueci de conferir os links e continuei a
leitura. Sou persistente pra burro quando é para ser burra, quando é para
arrebentar o peito contra as pedras. Que coisa! Queria ser persistente assim
para ganhar dinheiro, mas não sou. “Coisa de Saturno conjunto a Júpiter”,
pensei e conferi meu mapa. Sempre olho meu mapa astral e nunca domino nada, nem
mesmo minha insensatez.
Voltei ao texto que ironicamente fazia um sentido absurdo, desses de se
ver em espelho, nua, e com vergonha, de achar que todos em redor estão vendo
meus segredos escancarados nas páginas. Naquela mescla preta e branca. Até
conferi se a pessoa sentada ao meu lado espichava os olhos para meu livro.
“Ufa, não”. Há muito eu não lia Caio, há muito eu não pegava nem frases dele
soltas para pensar. Nem transitava pela lembrança a memória do nome para
indicar a alguém. Porém, como tudo que me impressiona na vida, as aparições
corriqueiras dele começaram a me pressionar, pintando hora ou outra no meio do
meu dia assim, despretensiosamente. Fragmentos de texto, pingos, quase um
Pollock. Nem posso dizer que elas sempre estiveram lá e eu é que não reparava,
porque sempre me mantive atenta a essas coisas. Literatura é respirar. Insisto
que aquele texto me era inédito, mas tão familiar que enquanto lia arrepiava,
sentia, doía, até que o DJ da rádio me sabotou, e desarmou. Matreiramente meteu
Maria Bethânia para sussurrar que “Então ta combinado, é quase nada, é tudo somente
sexo e amizade”. Não Bethânia, não está combinado, embora eu queira pelo
menos a amizade. Quero, e esse querer me dói em respeitar. Conflito errante, e
inconstante. Há horas que não dói, sabe?! Mas eu acho mesmo que o que me deixa
assim , efusiva, passional, e meio imatura, é essa coisa do sumiço que eu não
sei por onde passou, essa coisa da frieza que eu não sei como nasceu e esses
porquês todos que aparecem no meio do meu dia sem solução porque não sei para
quem remetê-los. Posso manda-los para você, com um cartão e um vaso de
margaridas? Amarelas? Você fica linda de amarelo, sabia? Não sei lidar bem com
esses de repentes de gentes, que uma hora estão presentes na vida da gente, e
um minuto depois não. E esse "não" vira tempo demais, e ai a gente
perde completamente a ideia do que representa. O não, o outro, a gente. É que
“eu gosto de você”, quis te dizer mil vezes como introdução a uma pergunta e a
um pedido. “Porque você sumiu?” – “Não, não tem obrigação de ficar perto, mas
avisa quando precisar sumir que eu entendo, te deixo, e minha agonia me deixa
em paz também”.
Prosseguindo pela leitura lembrei tanto de você, que quase não terminei
o livro porque a memória me roubava toda a concentração, e acho até que perdi
algumas linhas mesmo. Devem ter passado despercebidas por mim. O que não deu
para não perceber foi o DJ me sacaneando de novo, com um Caetano cantando
“Escorpião, sagitário, não sei que lá”. Tem sempre comigo esse negócio de
perguntar o signo. Devia ter perguntado pra senhora do ponto qual era o dela,
em vez de responder que eu não sabia há quanto tempo estava parada ali. Aliás,
há quanto tempo eu estou parada aqui... Não sei. Seria fácil descobrir. É só
procurar a data da nossa última conversa, mas cadê coragem de ser tão ridícula
assim? Mais fácil me expor nesse texto. Porque nem sei se você vai ler. Acho
que esses são os meus porquês. E assim essa casca pesada que as vezes arrasto
de não me deixar incomodar ninguém e ainda assim incomodar. Ou sentir que
incomodo, o que é a mesma coisa, do ponto de vista de ser eu.
E o texto me lembrando conversas nossas, não me ajudava, apenas trazia
consigo mais memórias “quando é que isso vai parar, Meu Deus”, no meio desse
respiro de indagação interna me lembrei que nossas conversas nem foram tantas,
mas sabe, eu tenho touro na casa 11, não sei abrir mão daquilo que de imediato
me gera o diagnóstico “vale a pena ter por perto”. Mesmo que não tão por perto
assim, mesmo que haja silêncios e espaços. Não é o silencio e o espaço que me
incomodam, é essa falta de saber. Falta que já está mais calma, por isso
consigo escrever. É que eu tenho umas suspeitas, e ter suspeitas é pior que
ficar na ignorância completa.
A moça ao meu lado se levantou para sair do ônibus e esbarrou com a
bolsa no meu rosto, arranhou, e nasceu uma micro gota de sangue. Junto a ela
uma raiva absoluta que passou rápido, mas nasceu. “Prestasse atenção”. Ela me
pediu desculpas, e ficou embaraçada com o estrago, quase perdeu o ponto, eu
desculpei e quis que ela saísse logo da situação, porque o constrangimento dela
me constrangia. Será que quando alguém machuca a gente dentro e fundo a gente
sente vergonha daquilo? De tudo? De ter sido atingido? Não sei, mas o Caio não
vai me responder. Tenho perdoado todo mundo, tenho tentado paciência ainda
maior, e mais amor para ver se isso volta para mim. Parece que as voltas do
mundo têm sido preguiçosas, mas sigo na fé de que se for perdão o que falta que
ele me chegue. Com a ajuda desse Júpiter que passa por leão, meu signo solar.
Caio me deu um recado aqui no texto: “(...) não tenho nada contra
qualquer coisa que soe a: uma tentativa.” E eu acho que vou me dar a chance.
Porém entendo que já tentei antes, algumas coisas, mas por abordagem errada, ou
amena demais. Ou não, talvez por não ter que ser mesmo, essas coisas não me
deram tanta resposta.
Acabo de descobrir que essa sensação que me acompanha há dias de oco,
vazio, sentimento de estar esquecendo algo se deve porque eu me esqueci de
deixar isso pra lá. De dar tempo ao tempo e tentar, na calma colher as razões
do destino.
Ao contrário da prudência, estou aqui, escrevendo isso tudo que não deve
fazer qualquer sentido que não para mim. Sabe o que é? No fundo mesmo, quero só
te mostrar que sou uma pessoa bacana, e que se você me disser que sabe disso eu
fico em paz, porque não tem bastado a mim saber disso, preciso que você também
saiba. E ai, eu forço a barra e deixo de ser uma pessoa bacana.
Porque no céu, a lua já correu peixes, áries, e agora touro. Esse
caminho mexe comigo, minha prudência, e essa casca de mulher madura que eu sei
que quero passar, mas que sem sucesso algum, agora, abandono completamente para
ser só humana e cheia de dúvidas.
Sigo lendo o texto do Caio e uma frase aparece, para que a memória de
você seja ainda mais forte, porque uso essa frase quando quero chegar um
pouquinho perto de saber o que minimamente você tem feito. Acho tão lindo. Não
seguro, e o olhar marejado embaça. Não vejo mais uma linha sequer, e um
rapaz que tomou o lugar da moça, sentando-se ao meu lado, me olha de rabo
de olho, naquela empatia de quem vê a dor alheia e já se sente solidário. As
pessoas veem poesia na dor com uma força e uma rapidez tão profunda que nunca
serão capazes na felicidade. Lamento ditadura da felicidade, essa você já
perdeu. Encosto a cabeça na janela sem nem lembrar de conferir se está
limpa. Porém isso dura pouco, porque decido que quero acabar logo com aquilo.
Vou até o fim da força, o fim do texto, até “odara”. Esvazio ao ver que
o texto acaba, e que meu ponto chega. Desço pela mesma rua há mais de 3 anos e
ela nunca foi tão inédita e estranha. Ajeito a bolsa, guardo o livro, respiro
fundo e caminho na esperança que mover-me cure, resolva, ajude.
Sim, sou só sensibilidade, intensidade, sentir demais atrapalha a ver.
Mas quero te dizer umas coisas. Eu estou bem, mesmo nisso que para mim tomou
essa dimensão, esse “tudo”, e vou continuar te respeitando sempre. Mesmo que
você não me queira perto, mesmo que não me queira em nada, me diga o que
precisa ser feito que eu farei porque é meu isso. Porque quero você bem, e
porque me quero em paz. Porque a vida tem dessas coisas, e um caminho cruzará
com o outro sempre que seja necessário se aprender a ler a pegada ali no chão.
Porque você libertou em mim coisas que eu nem sabia que tinha, que me são tão
raras e boas, e que mesmo se algum dia eu te odiar, coisa que nunca serei
capaz, creio, já te sou muito grata e nunca vou esquecer. Mesmo que isso não
signifique nada para você, meus textos, minhas músicas, minhas palavras, ou até
eu mesmo. Repito eu te sou imensamente grata, e te coloco nas minhas melhores
orações.
Eu quero dizer que hoje o Caio acordou-te em mim, e que mesmo que isso
continue ou não a acontecer por esse ou aquele interlocutor, cheiro, música,
vaso de planta, passarinho, poema, ou cor, eu sei que a responsabilidade de
gerir isso é e sempre será minha, mas não quero me furtar aos direitos de
tentar, por respeito a mim, e eu sei que você vai entender. Eu sei. Tentar por
qualquer meio lhe dizer, muito obrigada. Muito obrigada.
Claro que eu obviamente poderia ter simplificado tudo, ter tirado só uma
foto das páginas riscadas, do texto grifado incessantemente e em cores fortes.
Poderia ter feito um embrulho e ter te mandado com alguns chocolates e os
dizeres “me lembrei de você”, em vez de escrever tudo isso. Mas eu não sou
assim.
Simples.
No mais, fique bem, fique com qualquer saudade que te complete, com as
coisas que te preenchem, te derramem e te bebam.
Obrigada sempre por toda e cada palavra, dita ou presa nesse silêncio.
Esse é meu primeiro conto, e é para
você.
Notas da autora:
¹A você que leu esse texto até aqui
dedico a frase abaixo:
"(...) que aconteça alguma coisa bem
bonita com você, ela diz, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não
importa o que, como aquela fé que a gente teve um dia (...)"
²As referências de Caio Fernando Abreu
desse texto são do conto "Os sobreviventes" e as músicas citadas
são: "Ta combinado" e "Da maior importância" de Caetano
Veloso.)
³Segue abaixo o link da música “Clair de Lune” de Claude Debussy