quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poeta girassol, borboletou.

Hoje não é conto, poesia ou qualquer ficção.
Hoje é a dor mesmo.
Hoje foi-se um nos maiores desenhistas da palavra em língua portuguesa.
Outro, o Barros.
Construía imagens impensáveis com o “pegar delírio” de seus verbos,
Que substantivamente criavam mundos
Manoel libertou a palavra
Ela deve lhe ser grata, porque sempre apareceu vestida de festa nas linhas dele
Ele ajudou-nos um pouco a nos libertarmos também.
Comparou girassol com Deus, ou maior que isso, apropriou-se de ambos.
Desengessou
Remexeu e bagunçou as prateleiras.
Será silêncio agora que a pena pousou no papel
Mas a “liberdade caça jeito” e sua obra estará por ai.
Nós teremos para sempre que convier com esse sentimento deixado por todo gênio.
Essa incompletude de inalcançar
Ele descansou, depois de longos anos.
Nasceu em 1916...
Teve quase 100.
Esses gênios tornam nossa vivência mais complicada,
Elevam a existência a outro patamar.
Quando morrem, nos provam que são humanos, e ainda assim eternos
E nos rasgam, em nos esfregar na cara que não são deuses.
Como ousam?
Criam dentro da gente esses apertos,
Nós de marinheiros da palavra, da essência.
Porém ele mesmo nos consola, tamanha grandeza:
"A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas."


E Voou


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Para ler ao som de Debussy

"(...) sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?"
Caio Fernando Abreu
"Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz."
Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas



As instruções eram claras: “Para Ler ao som de Ângela Ro-Ro”. E eu obviamente desobedeci. Não tão imediatamente, porque estava no ponto esperando o ônibus para ir para o trabalho, e pensei seriamente que não deveria ler aquilo ali, poderia me custar o transporte. E para variar eu já estava atrasada. Aliás, para o trabalho e para vida. Hesitei também por respeito ao texto, ao autor e à dor que eu sabia que viria naquelas linhas. Temor mesmo o que senti, mas mergulhei no texto e nem reparei quando uma senhora me vendo compenetrada na leitura, talvez por total compaixão já premeditando as feridas certas, interrompeu-me para perguntar
- tem muito tempo que você está aqui?
Assustei com a voz, e com a pergunta que repentinamente, mesmo sendo tão corriqueira não soube responder.
- Não sei – disse com rubor no rosto – eu realmente não faço ideia
A segunda frase saiu com um tom de pedido de desculpas, no meio de um sorriso besta demais, que nada disfarçou. Droga de Mercúrio em câncer que sempre me faz dizer mais do que é realmente necessário, e esse meu Marte em câncer que me deixa com vergonha do Mercúrio, e de todo o resto do meu mapa. Decore por favor, que tenho lua e ascendente em gêmeos, então falo demais, demais mesmo.
Deixei de lado essa coisa toda, meti os fones no ouvido e sintonizei uma rádio qualquer. Pronto, nave mãe pronta para entrar no universo paralelo de músicas e leitura, num chacoalhar do ônibus. Primeiro sintoma de que eu deveria ter parado ali mesmo de ler, me veio um cheiro que não sei se é o seu, mas que me lembrou de você. Eu me esqueci de conferir no meu calendário se já estava imune por tempo suficiente aos links de ativar minha memória de você. Sempre esse ensaio, e o mais engraçado é que há algum tempo tenho sentido esse oco mesmo que a gente sente quando sabe que está esquecendo-se de algo. Larguei essa coisa de proteção para lá, esqueci de conferir os links e continuei a leitura. Sou persistente pra burro quando é para ser burra, quando é para arrebentar o peito contra as pedras. Que coisa! Queria ser persistente assim para ganhar dinheiro, mas não sou. “Coisa de Saturno conjunto a Júpiter”, pensei e conferi meu mapa. Sempre olho meu mapa astral e nunca domino nada, nem mesmo minha insensatez.
Voltei ao texto que ironicamente fazia um sentido absurdo, desses de se ver em espelho, nua, e com vergonha, de achar que todos em redor estão vendo meus segredos escancarados nas páginas. Naquela mescla preta e branca. Até conferi se a pessoa sentada ao meu lado espichava os olhos para meu livro. “Ufa, não”. Há muito eu não lia Caio, há muito eu não pegava nem frases dele soltas para pensar. Nem transitava pela lembrança a memória do nome para indicar a alguém. Porém, como tudo que me impressiona na vida, as aparições corriqueiras dele começaram a me pressionar, pintando hora ou outra no meio do meu dia assim, despretensiosamente. Fragmentos de texto, pingos, quase um Pollock. Nem posso dizer que elas sempre estiveram lá e eu é que não reparava, porque sempre me mantive atenta a essas coisas. Literatura é respirar. Insisto que aquele texto me era inédito, mas tão familiar que enquanto lia arrepiava, sentia, doía, até que o DJ da rádio me sabotou, e desarmou. Matreiramente meteu Maria Bethânia para sussurrar que “Então ta combinado, é quase nada, é tudo somente sexo e amizade”.  Não Bethânia, não está combinado, embora eu queira pelo menos a amizade. Quero, e esse querer me dói em respeitar. Conflito errante, e inconstante. Há horas que não dói, sabe?! Mas eu acho mesmo que o que me deixa assim , efusiva, passional, e meio imatura, é essa coisa do sumiço que eu não sei por onde passou, essa coisa da frieza que eu não sei como nasceu e esses porquês todos que aparecem no meio do meu dia sem solução porque não sei para quem remetê-los. Posso manda-los para você, com um cartão e um vaso de margaridas? Amarelas? Você fica linda de amarelo, sabia? Não sei lidar bem com esses de repentes de gentes, que uma hora estão presentes na vida da gente, e um minuto depois não. E esse "não" vira tempo demais, e ai a gente perde completamente a ideia do que representa. O não, o outro, a gente. É que “eu gosto de você”, quis te dizer mil vezes como introdução a uma pergunta e a um pedido. “Porque você sumiu?” – “Não, não tem obrigação de ficar perto, mas avisa quando precisar sumir que eu entendo, te deixo, e minha agonia me deixa em paz também”.
Prosseguindo pela leitura lembrei tanto de você, que quase não terminei o livro porque a memória me roubava toda a concentração, e acho até que perdi algumas linhas mesmo. Devem ter passado despercebidas por mim. O que não deu para não perceber foi o DJ me sacaneando de novo, com um Caetano cantando “Escorpião, sagitário, não sei que lá”. Tem sempre comigo esse negócio de perguntar o signo. Devia ter perguntado pra senhora do ponto qual era o dela, em vez de responder que eu não sabia há quanto tempo estava parada ali. Aliás, há quanto tempo eu estou parada aqui... Não sei. Seria fácil descobrir. É só procurar a data da nossa última conversa, mas cadê coragem de ser tão ridícula assim? Mais fácil me expor nesse texto. Porque nem sei se você vai ler. Acho que esses são os meus porquês. E assim essa casca pesada que as vezes arrasto de não me deixar incomodar ninguém e ainda assim incomodar.  Ou sentir que incomodo, o que é a mesma coisa, do ponto de vista de ser eu.
E o texto me lembrando conversas nossas, não me ajudava, apenas trazia consigo mais memórias “quando é que isso vai parar, Meu Deus”, no meio desse respiro de indagação interna me lembrei que nossas conversas nem foram tantas, mas sabe, eu tenho touro na casa 11, não sei abrir mão daquilo que de imediato me gera o diagnóstico “vale a pena ter por perto”. Mesmo que não tão por perto assim, mesmo que haja silêncios e espaços. Não é o silencio e o espaço que me incomodam, é essa falta de saber. Falta que já está mais calma, por isso consigo escrever. É que eu tenho umas suspeitas, e ter suspeitas é pior que ficar na ignorância completa.
A moça ao meu lado se levantou para sair do ônibus e esbarrou com a bolsa no meu rosto, arranhou, e nasceu uma micro gota de sangue. Junto a ela uma raiva absoluta que passou rápido, mas nasceu. “Prestasse atenção”. Ela me pediu desculpas, e ficou embaraçada com o estrago, quase perdeu o ponto, eu desculpei e quis que ela saísse logo da situação, porque o constrangimento dela me constrangia. Será que quando alguém machuca a gente dentro e fundo a gente sente vergonha daquilo? De tudo? De ter sido atingido? Não sei, mas o Caio não vai me responder. Tenho perdoado todo mundo, tenho tentado paciência ainda maior, e mais amor para ver se isso volta para mim. Parece que as voltas do mundo têm sido preguiçosas, mas sigo na fé de que se for perdão o que falta que ele me chegue. Com a ajuda desse Júpiter que passa por leão, meu signo solar.
Caio me deu um recado aqui no texto: “(...) não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa.” E eu acho que vou me dar a chance. Porém entendo que já tentei antes, algumas coisas, mas por abordagem errada, ou amena demais. Ou não, talvez por não ter que ser mesmo, essas coisas não me deram tanta resposta.
Acabo de descobrir que essa sensação que me acompanha há dias de oco, vazio, sentimento de estar esquecendo algo se deve porque eu me esqueci de deixar isso pra lá. De dar tempo ao tempo e tentar, na calma colher as razões do destino.
Ao contrário da prudência, estou aqui, escrevendo isso tudo que não deve fazer qualquer sentido que não para mim. Sabe o que é? No fundo mesmo, quero só te mostrar que sou uma pessoa bacana, e que se você me disser que sabe disso eu fico em paz, porque não tem bastado a mim saber disso, preciso que você também saiba. E ai, eu forço a barra e deixo de ser uma pessoa bacana.
Porque no céu, a lua já correu peixes, áries, e agora touro. Esse caminho mexe comigo, minha prudência, e essa casca de mulher madura que eu sei que quero passar, mas que sem sucesso algum, agora, abandono completamente para ser só humana e cheia de dúvidas.
Sigo lendo o texto do Caio e uma frase aparece, para que a memória de você seja ainda mais forte, porque uso essa frase quando quero chegar um pouquinho perto de saber o que minimamente você tem feito. Acho tão lindo. Não seguro, e o olhar marejado embaça.  Não vejo mais uma linha sequer, e um rapaz que tomou o lugar da moça, sentando-se ao meu lado, me olha de rabo de olho, naquela empatia de quem vê a dor alheia e já se sente solidário. As pessoas veem poesia na dor com uma força e uma rapidez tão profunda que nunca serão capazes na felicidade. Lamento ditadura da felicidade, essa você já perdeu.  Encosto a cabeça na janela sem nem lembrar de conferir se está limpa. Porém isso dura pouco, porque decido que quero acabar logo com aquilo.
Vou até o fim da força, o fim do texto, até “odara”. Esvazio ao ver que o texto acaba, e que meu ponto chega. Desço pela mesma rua há mais de 3 anos e ela nunca foi tão inédita e estranha. Ajeito a bolsa, guardo o livro, respiro fundo e caminho na esperança que mover-me cure, resolva, ajude.
Sim, sou só sensibilidade, intensidade, sentir demais atrapalha a ver. Mas quero te dizer umas coisas. Eu estou bem, mesmo nisso que para mim tomou essa dimensão, esse “tudo”, e vou continuar te respeitando sempre. Mesmo que você não me queira perto, mesmo que não me queira em nada, me diga o que precisa ser feito que eu farei porque é meu isso. Porque quero você bem, e porque me quero em paz. Porque a vida tem dessas coisas, e um caminho cruzará com o outro sempre que seja necessário se aprender a ler a pegada ali no chão. Porque você libertou em mim coisas que eu nem sabia que tinha, que me são tão raras e boas, e que mesmo se algum dia eu te odiar, coisa que nunca serei capaz, creio, já te sou muito grata e nunca vou esquecer. Mesmo que isso não signifique nada para você, meus textos, minhas músicas, minhas palavras, ou até eu mesmo. Repito eu te sou imensamente grata, e te coloco nas minhas melhores orações.
Eu quero dizer que hoje o Caio acordou-te em mim, e que mesmo que isso continue ou não a acontecer por esse ou aquele interlocutor, cheiro, música, vaso de planta, passarinho, poema, ou cor, eu sei que a responsabilidade de gerir isso é e sempre será minha, mas não quero me furtar aos direitos de tentar, por respeito a mim, e eu sei que você vai entender. Eu sei. Tentar por qualquer meio lhe dizer, muito obrigada. Muito obrigada.
Claro que eu obviamente poderia ter simplificado tudo, ter tirado só uma foto das páginas riscadas, do texto grifado incessantemente e em cores fortes. Poderia ter feito um embrulho e ter te mandado com alguns chocolates e os dizeres “me lembrei de você”, em vez de escrever tudo isso. Mas eu não sou assim.
Simples. 
No mais, fique bem, fique com qualquer saudade que te complete, com as coisas que te preenchem, te derramem e te bebam.
Obrigada sempre por toda e cada palavra, dita ou presa nesse silêncio.
Esse é meu primeiro conto, e é para você. 

Notas da autora: 
¹A você que leu esse texto até aqui dedico a frase abaixo:
"(...) que aconteça alguma coisa bem bonita com você, ela diz, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o que, como aquela fé que a gente teve um dia (...)"
²As referências de Caio Fernando Abreu desse texto são do conto "Os sobreviventes" e as músicas citadas são: "Ta combinado" e "Da maior importância" de Caetano Veloso.)
³Segue abaixo o link da música “Clair de Lune” de Claude Debussy


Proposta para o mundo.

Na pressa vesti qualquer roupa
Sai na rua embrulhada em desafio
Na estampa da camisa, um lírio.